Uma das características mais notáveis
instituída nos modos de racionalidade contemporâneos estaria na sua natureza
cínica. Aliás, para o cínico, não apenas o cinismo é sua modalidade fundamental
de pensar o mundo social, mas, sobretudo, somente é possível ser racional sendo
cínico, posto que o cinismo aqui é o padrão inesgotável de racionalidade. Não
ser cínico, pois, significa desviar-se desta economia das fraudes imperfeitas
para recolocar o pensamento e a tarefa da crítica nas barricadas da luta de
classes dos símbolos.
Lenin havia dito que o esquerdismo é a
doença infantil do comunismo. Um ataque contundente aos agrupamentos da
“esquerda da esquerda” que, entre outros
termos, foram e ainda são incapazes de perceber a genial fórmula de Gramsci,
quando indicava o paradoxo ontológico da forma da política socialista contra tudo
o que existe, a saber, o verdadeiro dilema realmente socialista entre
“pessimismo da inteligência” e “otimismo da vontade”. Deslocar-se entre dois
pontos do curto-circuito da luta de classes que se inicia, mas que segue, sem
nunca acabar-se, exige dos socialistas de todos os partidos a capacidade de
perceber que embora seja necessário
e urgente a destruição da forma da política do capitalismo, por exemplo, nem
toda luta deve ser suficiente na
consecução deste objetivo estratégico ineliminável do horizonte agudo de lutas
contra o capitalismo realmente existente.
Assim, num processo de luta contra o
capitalismo, que demanda o protagonismo do elemento ativo da classe desgarrada
dos tentáculos do Capital, existe uma complexa e árida relação, ora mediata, ora
imediata, entre a forma da política (tática) e seu conteúdo oculto e
substantivo mais fundamental (estratégia) que a move em todas as direções. Não
preciso salientar que em grande medida boa parte das diferenças entre os
esquerdistas encontra-se na compreensão e no acordo da necessidade em adotar
táticas estritas para situações da luta de classes que envolvam recuos
necessários nas posições e disposições de luta. Um pequeno exemplo pode ser
observado, em toda a sua potente dimensão, nos acontecimentos da Ocupação da
Câmara de Vereadores de São Luís. Aqui, como em alhures, a herança do Real e a
disputa pela memória do Real potencializam todo tipo de interpretação, muito
embora o sentido deste ensaio esteja em desautorizar vigorosamente algumas
“leituras” que não apenas são equivocadas, mas estruturam-se em torno de uma
série inescrupulosa de mentiras em estado
puro. Como havia salientado antes, a condição ontológica da mentira no
nosso tempo presente estaria não numa verdade oculta por detrás de uma forma enganosa.
Ao contrário, a mentira hoje não precisa de esconderijo para reproduzir-se e
mostrar-se mediante algum depuramento meticuloso. A potência da mentira é que
ela tem uma forma e um conteúdo em absoluto reconhecível sem algum esforço
sofisticado. Isto é, ela mostra-se como mentira
em estado puro e seu conteúdo de existência está na sua condição de ser
trágica, depois farsante, por fim trágico-farsante. Não seria esta a condição
das análises risíveis que buscam produzir um balanço positivo da Ocupação da
Câmara de Vereadores de São Luís? Refiro-me, mais precisamente, aos dois textos
(escandalosamente ridículos) produzidos pelo proto-anarquista Artemio Suvarin[2],
em que possibilita-se a tentar reconstruir a história recente conforme seus
desígnios esbórnicos, o limite-absoluto de sua razão cínica. Vamos ao pomo da
discórdia!
O elemento fundante da discórdia
encontra-se na forma da política que o movimento de Ocupação instituiu na
formulação de sua política de enfrentamento, seus impasses e resolução dos conflitos
estruturais básicos. Denomino isto de método, ou seja, a forma como o movimento
auto-organiza-se e delibera sua política na resolução dos conflitos
fundamentais. As questões de método são questões de princípios, portanto,
inegociáveis nos seus termos. A Ocupação definiu o método do horizontalismo
como o mecanismo político de direção política do movimento. Isso significa que
não havia líderes instituídos e que a auto-gestão seria a modalidade de
organização da forma e do conteúdo da Ocupação. Qualquer definição técnica (por
exemplo: o quê, como e quando comer) ou deliberação política (por exemplo:
devemos ou não negociar com a Câmara de Vereadores; a forma de negociação,
deliberação sobre comissões, etc.) estaria ortodoxa e radicalmente vinculada às
Assembléias públicas no processo de Ocupação, em que cada militante poderia
abertamente apresentar suas posições e disposições, teses, diferenças e
discordâncias sobre qualquer tema ou política ali destacada. Ora, em linguagem
socialista, não estamos falando sobre o conteúdo da democracia proletária?
Todavia, o vocabulário da política e sua consequente disputa pelo léxico do
conflito azedam, grosso modo, os esquerdistas que dividem-se fundamentalmente
no mundo contemporâneo entre esquerdistas “das causas sem classe” e
esquerdistas “das causas com classes”.
Destarte, o horizontalismo definido como
método da forma da política da Ocupação esquadrinhou-se pelo respeito às
decisões da maioria. Pois, mediante a total possibilidade de desacordo e
desagravo, pelo exercício da democracia radical nos espaços no movimento de
Ocupação, posição vencida tornar-se-ia disposição assumida pelo coletivo na sua
totalidade, inclusive pelas minorias derrotadas nas votações existentes. Toda
posição que é relativa objetiva tornar-se hegemônica, aspira à universalidade.
O que deve ser assegurado é o método, para além do que apresentei, que garanta
o direito de crítica e de questionamento de toda e qualquer posição adotada
sem, todavia, ignorarmos a necessidade da hegemonia como forma de poder
proletária, que conduza o movimento em direção a conquistas importantes para a
classe que luta.
Um contraste aqui se desenha de maneira
sublime. Nosso herói nacional insiste em dizer que sempre esteve certo,
defendendo o agravo da investidura direta contra os podres poderes. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma posição
minoritária no movimento de Ocupação, de tal maneira que todas as vezes que
foram apresentadas diferenças de encaminhamento, o processo negocial sempre
prevaleceu sobre a ação direta, pois os proletários ali agrupados e reunidos
estavam bastante dispostos a encaminhar resoluções práticas para os problemas
pautados coletivamente e com grande apoio popular. A ação direta é uma tática,
uma forma de enfrentamento, historicamente utilizada pelos proletários, mas em
situações mais fortemente revolucionárias ou de simples autodefesa da classe em
si mesma. Mas numa Ocupação, que estava dotada de uma pauta específica, com um
programa mínimo para a cidade de São Luís? A maioria do ocupantes entendia bem
isso e definia em todas as votações pela manutenção da Ocupação (um ato em si
mesmo bastante radical) e do diálogo político com os Vereadores. Além disso a
natureza do diálogo estava estipulada de maneira bastante precisa, a saber, a
abertura do debate público através de Sessões Extraordinárias e Audiências
Públicas que garantissem o amplo debate com os movimentos sociais ali
organizados. Caso garantíssemos isso, haveria algum sentido em manter a
Ocupação? Para a maioria da Ocupação não, mas para o nosso herói nacional...
Logo, se eu sou um golpista ou um manipulador, todos que votaram e defenderam
esta posição o são! A questão é que conquistamos uma enorme vitória sobre o
grupo político do poder governamental, fazendo-o recuar e arrancando na luta o debate
público, mesmo dominado por manipulações e enrolações, sobre os problemas de
interesse proletário. Mas nosso herói parecia estar nas falésias da revolução
de um homem só!
Não satisfeito com sua esquizofrenia
risível, nosso herói nacional insiste em dizer que não houve erro político no
dia 13 de agosto. Ele pergunta-se, pois, qual a diferença de método desta com a
Comissão do dia 07 de agosto. Pois bem, vamos ao caroço do problema. A Comissão
do dia 13 de agosto fora votada apenas para ir representar o movimento na
manutenção do diálogo com a Câmara dos Vereadores, mesmo após os absurdos
acontecimentos de agressão e violação de princípios constitucionais básicos
contra cidadãos legítimos. Nada mais, nada menos. Depois, dirigimo-nos ao
movimento e, numa pequena Assembleia, deliberamos pela manutenção do diálogo.
Não preciso salientar que o nosso herói nacional retirou-se da Assembleia em
função de sua monossilábica palavra de ordem: “ação direta já!”. Uma coerência
assustadora, diga-se de passagem. A comissão do dia 13 de agosto além de ter
sido eleita “apenas” para representar o Coletivo na Audiência Pública do dia 14
de agosto, aceitou ir a uma reunião no dia 13 de agosto e pelos relatos, às 20
horas, para receber do emissor governamental que a Audiência Pública estaria
cancelada. Ora, não é preciso muito para saber que é verdade que existe uma
tensão entre a Câmara e a Prefeitura de São Luís, todavia em questões
fundamentais de interesse da reprodução destes grupos atrasados possuem amplo e
irrestrito acordo. E mais: estão todos contra o movimento de Ocupação e nossa
análise sobre a senilidade política da Câmara. Não havia nenhuma posição
oficial da Mesa Diretora da Câmara, mas apenas operou-se uma manobra política
conduzida por apenas 3 Vereadores. Como sabemos, no dia 14 de agosto, haveria o
Painel sobre Mobilidade Urbana, mas pela ausência dos representantes da
Prefeitura e do movimento de Ocupação, a mesma não aconteceu. É sabido,
conforme relatou nosso herói, que seu único erro foi ter de maneira
“horizontalista”, “isolada”, em função de “circunstâncias emergenciais”,
cancelado o Ato do dia 14 de agosto. Caso não se tratasse de um
proto-anarquista, não ficaria surpreso pelo excessivo “centralismo”
autoritário. Mas, tratando-se de um libertário, o que pensar? Agora compreendo
bem as diferenças “arrogantes” de Marx com o minúsculo e “humilde” Bakunin e
seus delírios ridículos. A política é substituída pela administração da
“logística”. Para preservá-la, nosso herói, em nome da democracia radical,
cancela com um grosseiro argumento de segurança algo que deveria ser canalizado
para o embate político amplo. Mas como convocar uma Assembleia às 20 horas do
dia 13? Parece-me uma pergunta descabida, posto que deveríamos manter o Ato e
manter posição de vigilância e de denúncia pública da Prefeitura e da Câmara
por desrespeitar acordos firmados publicamente com o movimento de Ocupação. Uma
lição socialista inegociável. O movimento do Real modifica-se, o que exige
reorientação da política do movimento. Nesse caso, o Ato tinha o caráter de
“acompanhamento”, mas deveria ser reafirmado como um Ato de denúncia pública da
manobra levada a termo pelo poder governamental.
Portanto, trata-se de uma atitude política
do poder governamental em tentar desmobilizar o processo de luta e
enfrentamento contra os podres poderes.
O movimento deslizou numa tática antiga usada largamente pelo poder instituído para
desmobilizar a resistência aos ataques. Particularmente, fiz apenas a exigência
pública de explicações sobre o ocorrido e indicando a convocação de um espaço
público para resolver o problema. Para o nosso herói nacional trata-se de uma
tentativa singular de “tumultuar” o processo auto-organizativo do Coletivo.
Imagino que o direito inalienável de crítica não guarda nenhuma correlação com
tumulto. Um proletário tem o direito ontológico de desconfiar e de vigiar seus
lideres. Da mesma maneira que os proletários coletivamente têm o direito
ontológico de lutarem contra o Estado Ilegal. Mas como nosso herói não é muito
afeito ao rigor do debate, ou mesmo às premissas filosóficas das diferenças
políticas, entendo seu pouco trato com as questões de método. Contudo, não
posso me furtar de tentar colocar as coisas em seu devido lugar. Marx já havia
dito que não há programa mais preciso do que aquele que é a classe mesma em movimento.
Nunca exigi nenhuma Carta de Princípios ou algum Regimento Interno de algo que
foi apenas uma frente de mobilização de ação direta ocupante da Câmara de
Vereadores de São Luís. Minha exigência é mais radical, mais substantiva na
forma e no conteúdo de seus predicados. Minha exigência pauta-se na defesa
radical da democracia proletária, com todos os atributos qualitativos que tentei
esboçar provisoriamente. No que diz respeito a verdade, pois, tenho que miseravelmente
lembrar, conforme magistral fórmula apresentada por Guy Debord, que “a verdade
é um momento do que é falso”. Não estaríamos diante de uma mentira em estado puro do estatuto da envergadura do nosso herói
nacional? Descartes, perto de muitos “radicais livres”, é mais revolucionário na
história da Humanidade do que meros portadores de palavras de ordem vazias e
totalmente desprovidas de conteúdo efetivamente revolucionário. Luto, penso,
logo existo!
[1] Economista e Professor do IFMA, Campus Maracanã.
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