sexta-feira, 19 de junho de 2015

Redução da maioridade penal vai legitimar genocídio da juventude negra

Do site nacional do PSTU.


Medida pode ser votado em plenário no próximo dia 30

Comemoração da aprovação da redução da maioridade em comissão
Ag Brasil
No início da noite dessa quarta, 17, sob forte proteção policial, a comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de redução da maioridade penal no Brasil. Tendo à frente a chamada bancada da bala e evangélica, assim como o reacionário presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o projeto está pronto para ser votado no plenário da Câmara, o que deve ocorrer no próximo dia 30.
É inegável que a proposta de redução da maioridade penal dos atuais 18 para 16 anos encontra amplo respaldo na população. Sobretudo entre os mais pobres. E é também fato que essa discussão se dá num contexto de extrema violência urbana que atinge, principalmente, os mais pobres. Mas será que essa é a solução para conter a chamada criminalidade? Teria razão os Bolsonaros, Datenas e Malafaias da vida?
Para lançar luz nesse debate o Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicadas) divulgou o estudo "O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal" dos pesquisadores Enid Rocha Andrade Silva e Raissa Menezes de Oliveira. Nesse estudo, tomando como base a situação dos jovens de 12 a 17 anos com informações da PNAD (Pesquisa Nacional de Domicílios) de 2013, chegam à conclusão de que o Estado faz vistas grossas para a juventude brasileira. E não é em relação à impunidade.
A situação dos jovens no Brasil
O país conta com 21 milhões de jovens e adolescentes, 11% do total da população brasileira. A maior parte concentrada na região Sudeste (38,7%) e Nordeste (30,4%). Desses, quase 60% são negros. E qual a situação desses jovens? Pegando os jovens de 15 a 17 anos, mais de 1 milhão não tinham trabalho e não estudavam. Desses, quase 65% eram negros. Desse montante de jovens que não trabalham nem estudam, 83%, a grande maioria, são classificados como extremamente pobres e vivem em famílias com renda per capta que não chega a um salário mínimo.
Já os jovens que trabalham sobrevivem com a precarização e os baixos salários. A esmagadora maioria dos jovens de 15 que trabalha ganha menos de um salário mínimio. Ampliando essa base para os jovens de 15 a 17 anos, mais de metade, 60%, ganha menos que um mínimo.
Se os jovens brasileiros convivem com o desemprego e a precarização, quando o assunto é violência esses números não são melhores. Pegando a PNAD de 2009, vê-se que 1,6% da população já foi vítima de algum tipo de agressão. Entre os adolescentes, essa proporção vai para 1,9%. Desses, 60% são negros. Dos adolescentes agredidos, 2,8% dos brancos foi vítima de um policial ou agente de segurança privado. Já entre os adolescentes negros 4% já apanharam da polícia ou de segurança.
Já os números do Mapa da Violência de 2013 são mais dramáticos. Em 30 anos, as mortes por armas de fogo, por exemplo, cresceram 346%. Mas nos casos dos jovens, esse crescimento foi de 414%. Aqui também a juventude negra aparece mais exposta, com 133% a mais de mortes do que brancos.
Os menores infratores
Se a juventude e, sobretudo, a juventude negra é a maior vítima da violência de uma sociedade que a exclui e a relega ao desemprego e ao subemprego, o que dizer dos chamados menores infratores? Não contribuiriam pra essa violência como tanto parecem fazer crer os conservadores e reacionários de várias colorações? Um dado já bastante divulgado é o da Unicef Brasil que mostra que, dos 21 milhões de adolescentes do Brasil, menos de um por cento (0,013%) cometeu algum crime contra a vida.
Dos adolescentes detidos no Brasil em 2013, quase 40% haviam sido presos por roubo. A segunda causa das "prisões" de adolescentes e jovens no Brasil é tráfico, com 23,5%. Homicídio aparece só em terceiro lugar, com menos de 10% das causas de internação (8,75%). Latrocínio, roubo seguido de morte, responde por apenas 1,95% das detenções. Mas e esses jovens que mataram não se beneficiam de um sistema injusto que, sob o manto da proteção dos jovens e adolescentes, não promove a impunidade? Esse é um dos maiores mitos que cerca o tema.
Segundo o estudo citado pelo relatório do Ipea, comparando o sistema socioeducacional para jovens e o penal para os adultos, é mais fácil um jovem ou adolescente cumprir uma pena de três anos em regime fechado que um criminoso adulto. Pra um adulto ficar três anos na cadeia ele precisa ser condenado a, pelo menos, 18 anos de prisão, caso bem raro.
Temos então o seguinte quadro: enquanto jovens são vítimas preferenciais da violência, respondem à extrema minoria dos crimes praticados. Desses crimes, uma minoria ainda mais ínfima é formado por homicídios. E, uma vez detidos, ficam mais tempo presos que os adultos. E a maioria, 60% são negros. 
A quem serve a redução da maioridade?
Os dados levantados pelo Ipea e demais pesquisas comprovam que a causa da violência não vem de uma suposta impunidade a menores infratores. Revelam que, ao contrário, os jovens, e principalmente os jovens negros e pobres, são vítimas dessa violência. Por que então essa histeria em torno do tema? Por que os políticos se mobilizam para aprovar a redução da maioridade e comemoram pateticamente cada vitória conquistada no Congresso?
Ao contrário do que se pode pensar, essa medida não vai só não reduzir a violência, como ajudar a legitimar ainda mais o genocídio da juventude negra e pobre.  Encontra apoio popular porque é uma resposta aparentemente fácil a um problema concreto. Mas quando os deputados aprovam isso, não estão pensando em playboys que atropelam ciclistas pobres e fogem, nem em seus próprios filhos ou familiares. Há uma imagem bem definida em suas cabeças: e essa imagem é de um adolescente negro na favela ou na periferia. É contra eles que apontam suas armas.
O governo Dilma, por sua vez, ao mesmo tempo em que diz ser contra a redução da maioridade, costura um acordo via ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, com o PSDB. Esse acordo amplia o tempo de internação dos atuais 3 para até 10 anos. Ou seja, é uma variante do projeto da bancada da bala e vai no mesmo sentido de criminalizar a juventude.
Verdadeira impunidade
Enquanto isso, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) citado na Operação Lava Jato e respondendo a crimes que preencheriam metros de ficha corrida, continua impune. Renan Calheiros (PDMB-AL), outro notável corrupto, continua impune e, eventualmente, até ocupando a cadeira de presidente, já que é o chefe do Senado e substitui Dilma quando esta e o vice estão fora. Enquanto isso, todos os corruptos do Congresso Nacional estão impunes, gozando de todos os privilégios possíveis e tramando um shopping para atendê-los que vai custar R$ 1 bilhão.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

“A dívida pública é um megaesquema de corrupção institucionalizado”


Em entrevista a CartaCapital, Maria Lucia Fattorelli, que auditou a dívida pública do Equador e foi convidada pelo Syriza para analisar a dívida grega, aponta que o sistema atual provoca desvio de recursos públicos para o mercado financeiro.
Foto de Images of Money/flickr
Dois meses antes de o governo de Dilma Rousseff anunciar oficialmente o corte de 70 mil milhões de reais do Orçamento por conta do ajuste fiscal, uma brasileira foi convidada pelo Syriza, partido grego de esquerda que venceu as últimas eleições, para compor o Comité pela Auditoria da Dívida Grega com outros 30 especialistas internacionais. A brasileira em questão é Maria Lucia Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil. Mas o que o ajuste tem a ver com a recuperação da economia na Grécia? Tudo, diz Fattorelli. “A dívida pública é a espinha dorsal”.
Enquanto o Brasil caminha em direção à austeridade, a estudiosa participa da comissão que vai investigar os acordos, esquemas e fraudes na dívida pública que levaram a Grécia, segundo o Syriza, à crise económica e social. “Existe um ‘sistema da dívida’. É a utilização desse instrumento [dívida pública] como veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro”, complementa Fattorelli.
Esta não é a primeira vez que a auditora é acionada para esse tipo de missão. Em 2007, Fattorelli foi convidada pelo presidente do Equador, Rafael Correa, para ajudar na identificação e comprovação de diversas ilegalidades na dívida do país. O trabalho reduziu em 70% o stock da dívida pública equatoriana.
Em entrevista a CartaCapital, diretamente da Grécia, Fattorelli falou sobre como o “esquema”, controlado por bancos e grandes empresas, também se repete no pagamento dos juros da dívida brasileira, atualmente em 334.600 milhões de reais, e provoca a necessidade do tal ajuste.
Maria Lucia Fattorelli já auditou a dívida pública do Equador e agora faz o mesmo pela Grécia
Leia a entrevista:
CartaCapital: O que é a dívida pública?
Maria Lucia Fattorelli: A dívida pública, de forma técnica, como aprendemos nos livros de Economia, é uma forma de complementar o financiamento do Estado. Em princípio, não há nada errado no facto de um país, de um estado ou de um município se endividar, porque o que está acima de tudo é o atendimento do interesse público. Se o Estado não arrecada o suficiente, em princípio, ele poderia se endividar para o ingresso de recursos para financiar todo o conjunto de obrigações que o Estado tem. Teoricamente, a dívida é isso. É para complementar os recursos necessários para o Estado cumprir com as suas obrigações. Isso em principio.
CC: E onde começa o problema?
MLF: O problema começa quando nós começamos a auditar a dívida e não encontramos contrapartida real. Que dívida é essa que não pára de crescer e que leva quase metade do Orçamento? Qual é a contrapartida dessa dívida? Onde é aplicado esse dinheiro? E esse é o problema. Depois de várias investigações, no Brasil, tanto em âmbito federal, como estadual e municipal, em vários países latino-americanos e agora em países europeus, nós determinamos que existe um sistema da dívida. O que é isso? É a utilização desse instrumento, que deveria ser para complementar os recursos em benefício de todos, como o veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Esse é o esquema que identificamos onde quer que a gente investigue.
CC: E quem, normalmente, são os beneficiados por esse esquema? Em 2014, por exemplo, os juros da dívida subiram de 251.100 milhões de reais para 334.600 milhões de reais no Brasil. Para onde está indo esse dinheiro de facto?
O Tesouro Nacional lança os títulos da dívida pública e o Banco Central vende. Ele anuncia um leilão e só podem participar desse leilão 12 instituições credenciadas. São os chamados dealers. São os maiores bancos do mundo. De seis em seis meses, às vezes, essa lista muda. Mas sempre os maiores estão lá: Citibank, Itaú, HSBC... eles são os credores porque não tem nenhuma aplicação do mundo que pague mais do que os títulos da dívida brasileira
MLF: Nós sabemos quem compra esses títulos da dívida porque essa compra direta é feita por meio dos leilões. O processo é o seguinte: o Tesouro Nacional lança os títulos da dívida pública e o Banco Central vende. Como o Banco Central vende? Ele anuncia um leilão e só podem participar desse leilão 12 instituições credenciadas. São os chamados dealers. A lista dos dealers nós temos. São os maiores bancos do mundo. De seis em seis meses, às vezes, essa lista muda. Mas sempre os maiores estão lá: Citibank, Itaú, HSBC... é por isso que a gente fala que, hoje em dia, falar em dívida externa e interna não faz nem mais sentido. Os bancos estrangeiros estão aí comprando diretamente da boca do caixa. Nós sabemos quem compra e, muito provavelmente, eles são os credores porque não tem nenhuma aplicação do mundo que pague mais do que os títulos da dívida brasileira. É a aplicação mais rentável do mundo. E só eles compram diretamente. Então, muito provavelmente, eles são os credores.
CC: Por quê provavelmente?
MLF: Por que nem mesmo na CPI da Dívida Pública, entre 2009 e 2010, e olha que a CPI tem poder de intimação judicial, o Banco Central informou quem são os detentores da dívida brasileira. Eles chegaram a responder que não sabiam porque esses títulos são vendidos nos leilões. O que a gente sabe que é mentira. Porque, se eles não sabem quem são os detentores dos títulos, para quem eles estão pagando os juros? Claro que eles sabem. Se você tem uma dívida e não sabe quem é o credor, para quem você vai pagar? Em outro momento chegaram a falar que essa informação era sigilosa. Seria uma questão de sigilo bancário. O que é uma mentira também. A dívida é pública, a sociedade é que está pagando. O salário do servidor público não está na internet? Por que os detentores da dívida não estão? Nós temos que criar uma campanha nacional para saber quem é que está levando vantagem em cima do Brasil e provocando tudo isso.
CC: Qual é a relação entre os juros da dívida pública e o ajuste fiscal, em curso hoje no Brasil?
MLF: Todo mundo fala no corte, no ajuste, na austeridade e tal. Desde o Plano Real, o Brasil produz superavit primário todo ano. Tem ano que produz mais alto, tem ano que produz mais baixo. Mas todo ano tem superavit primário. O que quer dizer isso, superavit primário? Que os gastos primários estão abaixo das receitas primárias. Gasto primários são todos os gastos, com exceção da dívida. É o que o Brasil gasta: saúde, educação... exceto juros. Tudo isso são gastos primários. Se você olhar a receita, o que alimenta o orçamento? Basicamente a receita de tributos. Então superavit primário significa que o que nós estamos arrecadando com tributos está acima do que estamos gastando, então está sobrando uma parte.
CC: E esse dinheiro que sobra é para pagar os juros dívida pública?
MLF: Isso, e essa parte do superavit paga uma pequena parte dos juros porque, no Brasil, nós estamos emitindo nova dívida para pagar grande parte dos juros. Isso é escândalo, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe o que se chama de anatocismo. Quando você contrata dívida para pagar juros, o que você está fazendo? Você está transformando juros em uma nova divida sobre a qual vai incidir juros. É o tal de juros sobre juros. Isso cria uma bola de neve que gera uma despesa em uma escala exponencial, sem contrapartida, e o Estado não pode fazer isso. Quando nós investigamos qual é a contrapartida da dívida interna, percebemos que é uma dívida de juros sobre juros. A divida brasileira assumiu um ciclo automático. Ela tem vida própria e se retroalimenta. Quando isso acontece, aquele juros vai virar capital. E, sobre aquele capital, vai incidir novos juros. E os juros seguintes, de novo vão ser transformados em capital. É, por isso, que quando você olha a curva da dívida pública, a reta resultante é exponencial. Está crescendo e está quase na vertical. O problema é que vai explodir a qualquer momento.
CC: Explodir por quê?
A estratégia do sistema da dívida é a seguinte: você cria uma dívida e essa dívida torna o pais submisso. O país vai entregar património atrás de património. Assim nós já perdemos as telefónicas, as empresas de energia elétrica, as hidroelétricas, as siderúrgicas. Tudo isso passou para propriedade desse grande poder económico mundial
MLF: Por que o mercado – quando eu falo em mercado, estou me referindo aos dealers – está aceitando novos títulos da dívida como pagamento em vez de receber dinheiro moeda? Eles não querem receber dinheiro moeda, eles querem novos títulos, por dois motivos. Por um lado, o mercado sabe que os juros vão virar novo título e ele vai ter um volume cada vez maior de dívidas para receber. Segundo: dívida elevada tem justificado um continuo processo de privatização. Como tem sido esse processo? Entrega de património cada vez mais estratégico, cada vez mais lucrativo. Nós vimos há pouco tempo a privatização de aeroportos. Não é pouca coisa os aeroportos de Brasília, de São Paulo e do Rio de Janeiro estarem em mãos privadas. O que no fundo esse poder económico mundial deseja é património e controle. A estratégia do sistema da dívida é a seguinte: você cria uma dívida e essa dívida torna o pais submisso. O país vai entregar património atrás de património. Assim nós já perdemos as telefónicas, as empresas de energia elétrica, as hidroelétricas, as siderúrgicas. Tudo isso passou para propriedade desse grande poder económico mundial. E como é que eles [dealers] conseguem esse poder todo? Aí entra o financiamento privado de campanha. É só você entrar no site do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e dar uma olhada em quem financiou a campanha desses caras. Ou foi grande empresa ou foi banco. O nosso ataque em relação à dívida é porque a dívida é o ponto central, é a espinha dorsal do esquema.
CC: Como funcionaria a auditoria da dívida na prática? Como diferenciar o que é dívida legítima e o que não é?
MLF: A auditoria é para identificar o esquema de geração de dívida sem contrapartida. Por exemplo, só deveria ser paga aquela dívida que preenche o requisito da definição de dívida. O que é uma dívida? Se eu disser para você: ‘Me paga os 100 reais que você me deve’. Você vai falar: “Que dia você me entregou esses 100 reais?’ Só existe dívida se há uma entrega. Aconteceu isso aqui na Grécia. Mecanismos financeiros, coisas que não tinham nada a ver com dívida, tudo foi empurrado para as estatísticas da dívida. Tudo quanto é derivativo, tudo quanto é garantia do Estado, os tais CDS [Credit Default Swap - espécie de seguro contra calotes], essa parafernália toda desse mundo capitalista 'financeirizado'. Tudo isso, de uma hora para outra, pode virar dívida pública. O que é a auditoria? É desmascarar o esquema. É mostrar o que realmente é dívida e o que é essa farra do mercado financeiro, utilizando um instrumento de endividamento público para desviar recursos e submeter o País ao poder financeiro, impedindo o desenvolvimento socioeconómico equilibrado. Junto com esses bancos estão as grandes corporações e eles não têm escrúpulos. Nós temos que dar um basta nessa situação. E esse basta virá da cidadania. Esse basta não virá da classe política porque eles são financiados por esse setor. Da elite, muito menos porque eles estão usufruindo desse mecanismo. A solução só virá a partir de uma consciência generalizada da sociedade, da maioria. É a maioria, os 99%, que está pagando essa conta. O Armínio Fraga [ex-presidente do Banco Central] disse isso em depoimento na CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Dívida, em 2009, quando perguntado sobre a influência das decisões do Banco Central na vida do povo. Ele respondeu: “Olha, o Brasil foi desenhado para isso”.
CC: Quanto aproximadamente da dívida pública está na mão dos bancos e de grandes empresas? O Tesouro Direto, que todos os brasileiros podem ter acesso, corresponde a que parcela do montante?
MLF: Essa história do Tesouro Direto é para criar a impressão que a dívida pública é um negócio correto, que qualquer um pode entrar lá e comprar. E, realmente, se eu ou você comprarmos é uma parte legítima. Agora, se a gente entrar lá e comprar, não é direto. É só para criar essa ilusão. Tenta entrar lá para comprar um título que seja. Você vai chegar numa tela em que vai ter que escolher uma instituição financeira. E essa instituição financeira vai te cobrar uma comissão que não é barata. Ela não vai te pagar os juros todos do título, ela vai ficar com um pedaço. O banco, o dealer, que compra o título da dívida é quem estabelece os juros. Ele estabelece os juros que ele quer porque o governo lança o título e faz uma proposta de juros. Se, na hora do leilão, o dealer não está contente com aquele patamar de juros, ele não compra. Ele só compra quando os juros chegam no patamar que ele quer. Invariavelmente, os títulos vêm sendo vendidos muito acima da Selic [taxa básica de juros]. Em 2012, quando a Selic deu uma abaixada e chegou a 7,25%, nós estávamos acompanhando e os títulos estavam sendo vendidos a mais de 10% de juros. E eles sempre compram com deságio. Se o título vale 1000 reais, ele compra por 960 reais ou 970 reais, depende da pressão que ele quer impor no governo aquele dia. Olha a diferença. Se você compra no Tesouro Direto, você não vai ter desconto. Pelo contrário, você vai ter que pagar uma comissão. E você também não vai mandar nos juros. É uma operação totalmente distinta da operação direta de verdade que acontece lá no leilão.
CC: Por que é tão difícil colocar a auditoria em prática? Como o mercado financeiro costuma reagir a uma auditoria?
Nós estamos diante de um monstro mundial que controla o poder financeiro e o poder político com esquemas fraudulentos. É muito grave isso. Eu diria que é um megaesquema de corrupção institucionalizado
MLF: O mercado late muito, mas na hora ele é covarde. Lá no Equador, quando estávamos na reta final e vários relatórios preliminares já tinham sido divulgados, eles sabiam que tínhamos descoberto o mecanismo de geração de dívida, várias fraudes. Eles fizeram uma proposta para o governo de renegociação. Só que o Rafael Correa [atual presidente do Equador] não queria negociar. Ele queria recomprar e botar um ponto final. Porque quando você negocia, você dá uma vida nova para a dívida. Você dá uma repaginada na dívida. Ele não queria isso. Ele queria que o governo dele fosse um governo que marcasse a história do Equador. Ele sabia que, se aceitasse, ficaria subjugado à dívida. Ele foi até ao fim, fez uma proposta e o que os bancos fizeram? 95% dos detentores dos títulos entregaram. Aceitaram a oferta de recompra de no máximo 30% e o Equador eliminou 70% da sua dívida externa em títulos. No Brasil, durante os dez meses da CPI da Dívida, a Selic não subiu. Foi incrível esse movimento. Nós estamos diante de um monstro mundial que controla o poder financeiro e o poder político com esquemas fraudulentos. É muito grave isso. Eu diria que é um megaesquema de corrupção institucionalizado.
CC: O mercado financeiro e parte da imprensa costumam classificar a auditoria da dívida de calote. Por que a auditoria da dívida não é calote?
No dia em que a gente conseguir uma compreensão maior do que é uma auditoria da dívida e a fragilidade que lado está do lado de lá, a gente muda o mundo e o curso da história mundial
MLF: A auditoria vai investigar e não tem poder de decisão do que vai ser feito. A auditoria só vai mostrar. No Equador, a auditoria só investigou e mostrou as fraudes, mecanismos que não eram dívidas, renúncias à prescrição de dívidas. O que é isso? É um ato nulo. Dívidas que já estavam prescritas. Uma dívida prescrita é morta. E isso aconteceu no Brasil também na época do Plano Brady, que transformou dívidas vencidas em títulos da dívida externa. Depois, esses títulos da dívida externa foram usados para comprar nossas empresas que foram privatizadas na década de 1990: Vale, Usiminas...tudo comprado com título da dívida em grande parte. Você está vendo como recicla? Aqui, na Grécia, o país está sendo pressionado para pagar uma dívida ilegítima. E qual foi a renegociação feita pelo [Georgios] Papandréu [ex-primeiro-ministro da Grécia]? Ele conseguiu um adiamento em troca de um processo de privatização de 50 mil milhões de euros. Esse é o esquema. Deixar de pagar esse tipo de dívida é calote? A gente mostra, simplesmente, a parte da dívida que não existe, que é nula, que é fraude. No dia em que a gente conseguir uma compreensão maior do que é uma auditoria da dívida e a fragilidade que lado está do lado de lá, a gente muda o mundo e o curso da história mundial.
CC: Em comparação com o ajuste fiscal, que vai cortar 70 mil milhões de reais de gastos, tem alguma estimativa de quanto a auditoria da dívida pública poderia economizar de despesas para o Brasil?
MLF: Essa estimativa é difícil de ser feita antes da auditoria, porém, pelo que já investigámos em termos de origem da dívida brasileira e desse impacto de juros sobre juros, você chega a estimativas assustadoras. Essa questão de juros sobre juros eu abordei no meu último livro. Nos últimos anos, metade do crescimento da divida é nulo. Eu só tive condição de fazer o cálculo de maneira aritmética. Ficou faltando fazer os cálculos de 1995 a 2005 porque o Banco Central não nos deu os dados. E mesmo assim, você chega a 50% de nulidade da dívida, metade dela. Consequentemente para os juros seria o mesmo [montante]. Essa foi a grande jogada do mercado financeiro no Plano Real porque eles conseguiram gerar uma dívida maluca. No início do Plano Real os juros brasileiros chegaram a mais de 40% ao ano. Imagina uma divida com juros de 40% ao ano? Você faz ela crescer quase 50% de um ano para o outro. E temos que considerar que esses juros são mensais. O juro mensal, no mês seguinte, o capital já corrige sobre o capital corrigido no mês anterior. Você inicia um processo exponencial que não tem limite, como aconteceu na explosão da dívida a partir do Plano Real. Quando o Plano Real começou, nossa dívida estava em quase 80 mil milhões de reais. Hoje ela está em mais de três biliões de reais. Mais de 90% da divida é de juros sobre juros.
CC: E isso é algo que seria considerado ilegal na auditoria da dívida pública?
MLF: É mais do que ilegal, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe juros sobre juros para o setor público. Tem uma súmula do Supremo Tribunal Federal, súmula 121, que diz que ainda que tenha se estabelecido em contrato, não pode. É inconstitucional. Tudo isso é porque tem muita gente envolvida, favorecida e mal informada. Esses tabus, essa questão do calote, muita gente fala isso. Eles tentam desqualificar. Falamos em auditoria e eles falam em calote. Mas estou falando em investigar. Se você não tem o que temer, vamos abrir os livros. Vamos mostrar tudo. Se a dívida é tão honrada, vamos olhar a origem dessa dívida, a contrapartida dela.
CC: Ao longo da entrevista, a senhora citou diversos momentos da história recente do Brasil, o que mostra que esse problema vem desde o governo Fernando Henrique Cardoso, e passou pelas gestões Lula e Dilma. Mas como a questão da dívida se agravou nos últimos anos? A dívida externa dos anos 1990 se transformou nessa dívida interna de hoje?
MLF: Houve essa transformação várias vezes na nossa história. Esses movimentos foram feitos de acordo com o interesse do mercado. Tanto de interna para externa, como de externa para interna, de acordo com o valor do dólar. Esses movimentos são feitos pelo Banco Central do Brasil em favor do mercado financeiro, invariavelmente. Quando o dólar está baixo, e seria interessante o Brasil quitar a dívida externa, por precisar de menos reais, se faz o contrário. Ele contrai mais dívida em dólar. Esses movimentos são sempre feitos contra nós e a favor do mercado financeiro.
CC: E o pagamento da dívida externa, em 2005?
MLF: O que a gente critica no governo Lula é que, para pagar a dívida externa em 2005, na época de 15 mil milhões de dólares, ele emitiu reais. Ele emitiu dívida interna em reais. A dívida com o FMI [Fundo Monetário Internacional] era 4% ao ano de juros. A dívida interna que foi emitida na época estava em média 19,13% de juros ao ano. Houve uma troca de uma dívida de 4% ao ano para uma de 19% ao ano. Foi uma operação que provocou danos financeiros ao País. E a nossa dívida externa com o FMI não era uma dívida elevada, correspondia a menos de 2% da dívida total. E por que ele pagou uma dívida externa para o FMI que tinha juros baixos? Porque, no inconsciente coletivo, divida externa é com o FMI. Todo mundo acha que o FMI é o grande credor. Isso, realmente, gerou um ganho político para o Lula e uma tranquilidade para o mercado. Quantos debates a gente chama sobre a dívida e as pessoas falam: “Esse debate já não está resolvido? Já não pagamos a dívida toda?’. Não são poucas as pessoas que falam isso por conta dessa propaganda feita de que o Lula resolveu o problema da dívida. E o mercado ajuda a criar essas coisas. Eu falo o mercado porque, na época, eles também exigiram que a Argentina pagasse ao FMI. E eles também pagaram de forma antecipada. Você vê as coisas aconteceram em vários lugares, de forma simultânea. Tudo bem armado, de fora para dentro, na mesma época.
CC: O que a experiência grega de auditoria da dívida poderia ensinar ao Brasil, na sua opinião?
MLF: São muitas lições. A primeira é a que ponto pode chegar esse plano de austeridade fiscal. Os casos aqui da Grécia são alarmantes. Em termos de desemprego, mais de 100 mil jovens formados deixaram o país nos últimos anos porque não têm emprego. Foram para o Canadá, Alemanha, vários outros países. A queda salarial, em média, é de 50%. E quem está trabalhando está feliz porque normalmente não tem emprego. Jornalista, por exemplo, não tem emprego. Tem até um jornalista que está colaborando com a nossa comissão e disse que só não está passando fome por conta da ajuda da família. A maioria dos empregos foram flexibilizados, as pessoas não têm direitos. Serviços de saúde fechados, escolas fechadas, não tem vacina em posto de saúde. Uma calamidade terrível. Trabalhadores virando mendigos de um dia para o outro. Tem ruas aqui em que todas as lojas estão fechadas. Todos esses pequenos comerciantes ou se tornaram dependentes da família ou foram para a rua ou, pior, se suicidaram. O número de suicídios aqui, reconhecidamente por esse problema económico, passa de 5 mil. Tem vários casos de suicídio em praça pública para denunciar. Nesses dias em que estou aqui, houve uma homenagem em frente ao Parlamento para um homem que se suicidou e deixou uma carta na qual dizia que estava entregando a vida para que esse plano de austeridade fosse denunciado.
Entrevista publicada em Carta Capital

terça-feira, 2 de junho de 2015

PÁTRIA EDUCADORA VERSUS PÁTRIA DOS BANQUEIROS


Escrito por José Menezes Gomes  - Doutor pela USP e pós Doutor pela UFPE 

Logo após a Presidente Dilma lançar o seu lema: Brasil, Pátria Educadora, o governo deu inicio as ações para a aprovação do ajuste fiscal a cargo do Ministro Levy, apoiador do candidato do PSDB, derrotado na última eleição. Este pacote cortou R$ 70 bilhões das despesas sociais, sendo R$ 9,3 bilhões da educação. Apesar do lema criado, que indicaria uma atenção a educação, o que observamos no Orçamento da União de 2015 foi a previsão de gasto com o serviço da dívida pública um valor de R$ 1,3 trilhão. Em 2014 a previsão foi de R$ 1 trilhão ou 12 vezes os gastos com educação. Com isso o governo pretende sinalizar ao mercado ou aos credores da dívida pública (grandes bancos e fundos de pensão) que irá cumprir a meta de superavit primário de 1,1% do PIB.

Este acréscimo de R$ 300 bilhões para este ano representa um valor superior ao gasto de R$ 255 bilhões com pessoal da União para 2015 (aposentados e não aposentados). Em outras palavras, o que foi acrescido com o serviço da divida pública poderia ter garantido a duplicação das despesas com pessoal. Entretanto, o discurso do governo e da mídia burguesa é que o governo está gastando muito com pessoal e que poderia comprometer a solidez das contas públicas. Esta mídia encobre que os cortes ocorrem nas despensas sociais e que sempre são acompanhados pelo aumento dos gastos com o serviço do dívida pública. Ao mesmo tempo, temos a pratica da elevação da taxa de juros como forma de combater a inflação. Cria-se um vínculo falso entre elevar a taxa de juros como forma prioritária de se combater a inflação e de retomada do crescimento econômico.

As ameaças as universidades públicas não se resumem apenas diretamente dos cortes de recursos, mas do conjunto dos ataques aos direitos dos trabalhadores, em curso. Nesta direção, temos: a) privatização da parte principal da previdência dos servidores e a criação do FUNPRESP, b) privatização dos Hospitais Universitários e a criação da EBSERH, c) a proposta da CAPES da contratação de professores sem ser pelo Regime Jurídico Único - RJU, d) a ampliação da contratação de trabalhadores terceirizados em substituição aos Técnicos administrativos efetivos. Além disse, o temos a desconstrução da carreira docente em curso mediante o acordo assinado pelo PROIFES nos últimos três anos. Todas estas ações se juntam na iniciativa do STF de reconhecer a terceirização nas áreas fins do serviço público, o que pode ameaçar todas as carreiras do serviço seja federal, estadual ou municipal. Considerando que em quatro anos metade dos professores da Universidades federais terão direito a se aposentar e se não for assegurando a abertura de concurso para preenchimento destas vagas pelo RJU, poderíamos ter no curto prazo metade do corpo docente sem ser servidor público, acentuando ainda a precarização do trabalho docente.

A expansão das IFES se deu via REUNI, enquanto parte dos recursos públicos foi destinada a financiar a Educação privada via FIES e PROUNI. Esta expansão sem o devido financiamento e planejamento foi acompanhada pelos ataques ao núcleo do conceito de universidade baseada no tripe Ensino, Pesquisa e Extensão, de forma implacável. Cada peça montada na nova concepção de Universidade e de carreira docente faz retomar os princípios fundamentais da Reforma do Estado proposta por Bresser Pereira, ex- ministro de FHC. No momento atual temos um aprofundamento dos cortes enquanto se avança o conjunto da Reforma Universitária, que na Europa já se mostrou devastadora para aquelas universidades e das respectivas carreiras docentes, há mais de duas décadas, em nome da austeridade fiscal.

A ameaça que a universidades universidades públicas sofre resulta, principalmente, do aprofundamento dos ataques feitos à classe trabalhadora, desde o inicio do neoliberalismo na década de 1990, que começou pelo ataque aos trabalhadores do setor privado e que agora se generaliza pelo setor público. A diferença é que estes ataques começaram no brasil por governo explicitamente neoliberal e que agora se aprofundam por governos que se constituíram num suposto combate ao neoliberalismo, mas que uma vez no governo aprofundaram estas políticas fazendo-as ainda mais letais devido a cooptação de parte do movimento social.

Os bancos, que já tiveram lucros exorbitantes em 2014, certamente terão lucros ainda maiores em 20151, tendo vista a política de ajuste fiscal com cortes nas despesas sociais e aumento nas despesas com o serviço da dívida. Somente o banco Itaú teve lucro de 29% em 2014. Isto tudo ocorre quando a retração da economia já levou a PIB próximo de zero em 2014 e com grande possibilidade de PIB negativo para 2015. Em outras palavras, a política de ajuste fiscal somado a elevação dos juros, acabam mesmo é elevando ainda mais a dívida pública que em seguida leva a novos cortes das despesas sociais e mais ataques aos servidores e serviços públicos. Está é a politica da pátria dos banqueiros, já que estes são os responsáveis de pela compra de 55% dos títulos públicos.

O momento atual exige um fortalecimento da greve nas Universidades federais com os três segmentos (alunos, técnicos e professores) e da defesa dos serviços públicos e da luta pela auditoria da dívida como prevê o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988. É bom recordar que na auditoria da dívida realizada no Equador foi constatado que 70% daquela dívida era ilegal. Sendo assim, temos uma dívida pública que cada vez compromete parte crescente do orçamento que pode ser em grande parte ilegal, como constatado no Equador.