terça-feira, 16 de novembro de 2010

A DANÇA DAS MOEDAS. Por JOSÉ MARTINS.

Não é fácil encontrar uma moeda capaz de cumprir o papel de equivalente universal do valor. Desde o final da 2ª Guerra (1945), aos trancos e barrancos, o dólar cumpre esse papel. A dificuldade é maior ainda quando se procura substituir o dólar dessa função por uma ficção burocrática qualquer e imaginar que isso possa ser a coisa mais simples do mundo.



Sempre que volta a discussão sobre o valor das moedas internacionais, nunca é demais lembrar aquela brincadeira de Marx, parafraseando o liberal inglês William Gladstone, de que “nem mesmo o amor enlouqueceu tanta gente quanto as cogitações acerca da essência do valor da moeda”. Na insana discussão do G20 (as 20 maiores economias do mundo), em Seul, na última semana, por exemplo, os dirigentes do moderno sistema imperialista, principalmente seus capatazes das economias dominadas da América Latina, Ásia, etc. se contorciam mais uma vez em torno daquelas perigosas cogitações.



Para Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, antigo Secretário do Comércio dos Estados Unidos, por exemplo, a solução para as atuais turbulências cambiais seria um “novo sistema monetário usando o ouro como moeda padrão de reserva internacional”. Um alto burocrata norte-americano com medo do dólar norte-americano? Se assim o fosse, ele poderia ter aproveitado esse momento de suprema sapiência e formulado de maneira completa o único modelo capitalista de comércio internacional possível de funcionar com a volta da “relíquia bárbara” de que falava Keynes na reunião de Bretton Woods, em 1945: a volta simultânea do mercantilismo (1).

SAUDADES DA ERA DOURADA – No início do século 21, em tempos de novas ondas de superprodução de capital e suas catastróficas conseqüências, os economistas tornam-se mais românticos do que nunca. Procuram, pelo menos no discurso, imaginar a segurança de tempos em que a produção de capital ainda era ainda muito incipiente. Tudo era bem menos perigoso para os piratas chegando à Ilha do Tesouro do que para os capitalistas sobrevoando Wall Street com helicópteros de Bernanke abarrotados de quase um trilhão de dólares.

Na época do mercantilismo, não era preciso acumular capital, bastava saquear e entesourar reservas internacionais (ouro e outros metais preciosos). Ou, em suas etapas mais avançadas, bastava para um país, alem de saquear o próximo, vender mais mercadorias para o exterior do que comprar: exportar era a solução! Bastava gerar superávits comerciais cada vez maiores e acumular ouro, muito ouro. E entupir o tesouro nacional com inúteis reservas internacionais. Mas a conta dessa preguiça histórica não demorou muito a chegar. Lembram do fim que levou Portugal, Espanha, grandes potências da era mercantilista clássica (2)?

Questionado sobre essa proposta de Zoellick, o conhecido economista Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, preferiu inteligentemente considerá-la como uma bobagem: “A idéia de um papel monetário para o ouro foi uma idéia que ele jogou para o ar. Acho pouco provável que ele tenha uma idéia completamente formulada sobre o tema, ou que ele vá aparecer mais tarde com uma proposta completamente desenvolvida. É apenas uma idéia pela metade que escorregou para dentro do discurso antes de ser completamente pronta. Acho que vai escorregar para fora e desaparecer muito rapidamente” (3)

Pelo menos alguém ainda procura manter a compostura e manter a discussão em níveis aceitáveis. Não é o caso, infelizmente, de um ilustre economista brasileiro, atual ministro da Fazenda, que andou propondo, com ares de grande originalidade, uma “cesta de moedas” como nova referência monetária internacional, quer dizer, uma nova e revolucionária moeda padrão de reserva internacional, substituindo o dólar norte-americano. A proposta de Guido Mantega disputa pau a pau com a de Zoellick o primeiro lugar das insanidades proferidas na última reunião do G-20 em Seul. Para ajudar no voto de nossos leitores para decidir quem deve ganhar tão valoroso prêmio, vamos a mais detalhamentos da originalíssima proposta

A “CESTA” DE MANTEGA – Essa panacéia do ministro brasileiro para todos os problemas do mercado cambial mundial, além de não ser nem um pouco original como proposta, já existe praticamente há bom tempo. Desde Bretton Woods, final de 1945, logo depois de encerrada a 2ª Guerra Mundial, a proposta da delegação inglesa (chefiada por Keynes) propôs o Bancor para substituir o ouro como padrão de reserva internacional.



O Bancor seria exatamente uma cesta das principais moedas conversíveis do sistema. A proposta foi recusada pela delegação norte-americana, não só porque o Bancor não passava de uma ficção burocrática, ninguém poderia apoiar uma coisa que não poderia funcionar, mas porque a “proposta” norte-americana era simplesmente a imposição do dólar, sua moeda nacional, como a nova moeda padrão de reserva internacional. Foi aprovada.

Em 1969, talvez para brincar de especialistas em moeda, os burocratas do FMI criaram um frankstein parecido ao Bancor, chamada Direito Especial de Saque (DES). Não passa de um título bancário pela metade, sem grande utilidade. O DES não circula no mercado privado, só entre bancos centrais. Seu valor é determinado pela variação média da taxa de câmbio do dólar, euro, libra inglesa e iene japonês. Mais precisamente, através de média ponderada: soma de uma quantia específica das 4 moedas com a cotação em dólar estadunidense, com base nas taxas diárias de câmbio do mercado de Londres. Quer dizer, além de não cumprir na prática o papel de uma verdadeira moeda (e nem de uma “quase-moeda”, como um título público qualquer), a cotação diária do DES é dada em dólar norte-americano! Girou, girou, e caiu no colo da moeda padrão de reserva de fato. Como foi dito antes, não é fácil encontrar uma moeda capaz de cumprir o papel de equivalente universal do valor.

Assim, a única e grandissima novidade da “cesta de Mantega” é que seu autor propõe, sem qualquer preocupação com o ridículo, que além das moedas conversíveis do DES, sejam incluidos também o real, o yuan chinês, a rúpia indiana, o rublo russo e outros rebotalhos sem qualquer conversibilidade no mercado mundial real de moedas. Talvez com tão nobres companhias, o DES verde-amarelo de Mantega pudesse aposentar o dólar e reinar galhardamente por um mundo do capital lindamente pacífico e pleno de boas intensões.




O problema, então, é que o ministro brasileiro se esqueceu de explicar: primo, por quê o DES do FMI (composto por uma cesta de moedas fortes, plenamente conversíves) não consegue cumprir nenhuma função de moeda padrão de reserva internacional nas trocas reais de mercadoria e fluxos de capitais internacionais? Secondo, por quê sua proposta de um DES dos pobres – que sem nenhuma explicação agrega ao grupo de moedas fortes do DES do FMI um um monte de moedas fracas, não conversíveis, que ninguem no mundo tem confiança e que, portanto, ninguém aceitaria em suas trocas internacionais – cumpriria na prática esse monopólio de nova referência monetária internacional?

Fazendo a crítica das insanidades teóricas da economia vulgar chegamos a alguns importantes problemas ligados á estrutura do mercado monetário e cambial internacional. Afinal, como se distribuem as diversas moedas nacionais no tabuleiro do sistema monetário mundial? Por quê, na aparência, as moedas nacionais circulam com direitos iguais, mas, na realidade prática do sistema, algumas poucas moedas fortes monopolizam a conversibilidade da grande maioria de moedas fracas? O que é valor e o que é taxa cambial de uma moeda nacional? O que, além das taxas cambiais, confere verdadeiramente valor (e confiança) a uma moeda nacional nas trocas internacionais? Responder a essas perguntas é a primeira condição para se entender melhor as turbulências monetárias e cambiais atuais e as suas perspectivas. É o que procuraremos fazer no próximo boletim.

Citações
1 O mercantilismo clássico (doutrina de gerar superávits comerciais crescentes e acumular montanhas de ouro) predominou nos primórdios do moderno regime capitalista de produção – período 1500 a 1750. Smith e Ricardo gastaram muita tinta para demonstrar a imbecilidade desta idéia de se privilegiar o comércio exterior como motor do desenvolvimento econômico.

2 Pode parecer incrível, mas até hoje a quase totalidade dos países dominados segue a doutrina mercantilista. Não exatamente aquela doutrina clássica portuguesa, espanhola, etc., mas a doutrina neomercantilista da etapa atual do imperialismo. A totalidade das economias dominadas da periferia do sistema, carinhosamente chamados de “emergentes” na linguagem imperialista, seguem em maior ou menor grau essa doutrina dos tolos de gerar superávits comerciais e acumular reservas internacionais. A China é o exemplo mais evidente dessa forma de submissão imperialista. O “socialismo de mercado” é uma enorme Cingapura. Isso faz parte do desenvolvimento desigual e combinado do mercado mundial que já cansamos de detalhar em boletins anteriores.

3 Valor Econômico –“Para Eichengreen, Fed acerta ao tentar evitar uma deflação nos EUA”– 10/11/2010.

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