segunda-feira, 9 de setembro de 2013

LIÇÕES SOCIALISTAS SOBRE A FORMA DA POLÍTICA: ou duas ou três coisas que “eu sei” sobre a Ocupação da Câmara de Vereadores de São Luís


Do militante e socialista Saulo Pinto Silva[1]
Uma das características mais notáveis instituída nos modos de racionalidade contemporâneos estaria na sua natureza cínica. Aliás, para o cínico, não apenas o cinismo é sua modalidade fundamental de pensar o mundo social, mas, sobretudo, somente é possível ser racional sendo cínico, posto que o cinismo aqui é o padrão inesgotável de racionalidade. Não ser cínico, pois, significa desviar-se desta economia das fraudes imperfeitas para recolocar o pensamento e a tarefa da crítica nas barricadas da luta de classes dos símbolos.
Lenin havia dito que o esquerdismo é a doença infantil do comunismo. Um ataque contundente aos agrupamentos da “esquerda  da esquerda” que, entre outros termos, foram e ainda são incapazes de perceber a genial fórmula de Gramsci, quando indicava o paradoxo ontológico da forma da política socialista contra tudo o que existe, a saber, o verdadeiro dilema realmente socialista entre “pessimismo da inteligência” e “otimismo da vontade”. Deslocar-se entre dois pontos do curto-circuito da luta de classes que se inicia, mas que segue, sem nunca acabar-se, exige dos socialistas de todos os partidos a capacidade de perceber que embora seja necessário e urgente a destruição da forma da política do capitalismo, por exemplo, nem toda luta deve ser suficiente na consecução deste objetivo estratégico ineliminável do horizonte agudo de lutas contra o capitalismo realmente existente.
Assim, num processo de luta contra o capitalismo, que demanda o protagonismo do elemento ativo da classe desgarrada dos tentáculos do Capital, existe uma complexa e árida relação, ora mediata, ora imediata, entre a forma da política (tática) e seu conteúdo oculto e substantivo mais fundamental (estratégia) que a move em todas as direções. Não preciso salientar que em grande medida boa parte das diferenças entre os esquerdistas encontra-se na compreensão e no acordo da necessidade em adotar táticas estritas para situações da luta de classes que envolvam recuos necessários nas posições e disposições de luta. Um pequeno exemplo pode ser observado, em toda a sua potente dimensão, nos acontecimentos da Ocupação da Câmara de Vereadores de São Luís. Aqui, como em alhures, a herança do Real e a disputa pela memória do Real potencializam todo tipo de interpretação, muito embora o sentido deste ensaio esteja em desautorizar vigorosamente algumas “leituras” que não apenas são equivocadas, mas estruturam-se em torno de uma série inescrupulosa de mentiras em estado puro. Como havia salientado antes, a condição ontológica da mentira no nosso tempo presente estaria não numa verdade oculta por detrás de uma forma enganosa. Ao contrário, a mentira hoje não precisa de esconderijo para reproduzir-se e mostrar-se mediante algum depuramento meticuloso. A potência da mentira é que ela tem uma forma e um conteúdo em absoluto reconhecível sem algum esforço sofisticado. Isto é, ela mostra-se como mentira em estado puro e seu conteúdo de existência está na sua condição de ser trágica, depois farsante, por fim trágico-farsante. Não seria esta a condição das análises risíveis que buscam produzir um balanço positivo da Ocupação da Câmara de Vereadores de São Luís? Refiro-me, mais precisamente, aos dois textos (escandalosamente ridículos) produzidos pelo proto-anarquista Artemio Suvarin[2], em que possibilita-se a tentar reconstruir a história recente conforme seus desígnios esbórnicos, o limite-absoluto de sua razão cínica. Vamos ao pomo da discórdia!
O elemento fundante da discórdia encontra-se na forma da política que o movimento de Ocupação instituiu na formulação de sua política de enfrentamento, seus impasses e resolução dos conflitos estruturais básicos. Denomino isto de método, ou seja, a forma como o movimento auto-organiza-se e delibera sua política na resolução dos conflitos fundamentais. As questões de método são questões de princípios, portanto, inegociáveis nos seus termos. A Ocupação definiu o método do horizontalismo como o mecanismo político de direção política do movimento. Isso significa que não havia líderes instituídos e que a auto-gestão seria a modalidade de organização da forma e do conteúdo da Ocupação. Qualquer definição técnica (por exemplo: o quê, como e quando comer) ou deliberação política (por exemplo: devemos ou não negociar com a Câmara de Vereadores; a forma de negociação, deliberação sobre comissões, etc.) estaria ortodoxa e radicalmente vinculada às Assembléias públicas no processo de Ocupação, em que cada militante poderia abertamente apresentar suas posições e disposições, teses, diferenças e discordâncias sobre qualquer tema ou política ali destacada. Ora, em linguagem socialista, não estamos falando sobre o conteúdo da democracia proletária? Todavia, o vocabulário da política e sua consequente disputa pelo léxico do conflito azedam, grosso modo, os esquerdistas que dividem-se fundamentalmente no mundo contemporâneo entre esquerdistas “das causas sem classe” e esquerdistas “das causas com classes”.
Destarte, o horizontalismo definido como método da forma da política da Ocupação esquadrinhou-se pelo respeito às decisões da maioria. Pois, mediante a total possibilidade de desacordo e desagravo, pelo exercício da democracia radical nos espaços no movimento de Ocupação, posição vencida tornar-se-ia disposição assumida pelo coletivo na sua totalidade, inclusive pelas minorias derrotadas nas votações existentes. Toda posição que é relativa objetiva tornar-se hegemônica, aspira à universalidade. O que deve ser assegurado é o método, para além do que apresentei, que garanta o direito de crítica e de questionamento de toda e qualquer posição adotada sem, todavia, ignorarmos a necessidade da hegemonia como forma de poder proletária, que conduza o movimento em direção a conquistas importantes para a classe que luta.
Um contraste aqui se desenha de maneira sublime. Nosso herói nacional insiste em dizer que sempre esteve certo, defendendo o agravo da investidura direta contra os podres poderes. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma posição minoritária no movimento de Ocupação, de tal maneira que todas as vezes que foram apresentadas diferenças de encaminhamento, o processo negocial sempre prevaleceu sobre a ação direta, pois os proletários ali agrupados e reunidos estavam bastante dispostos a encaminhar resoluções práticas para os problemas pautados coletivamente e com grande apoio popular. A ação direta é uma tática, uma forma de enfrentamento, historicamente utilizada pelos proletários, mas em situações mais fortemente revolucionárias ou de simples autodefesa da classe em si mesma. Mas numa Ocupação, que estava dotada de uma pauta específica, com um programa mínimo para a cidade de São Luís? A maioria do ocupantes entendia bem isso e definia em todas as votações pela manutenção da Ocupação (um ato em si mesmo bastante radical) e do diálogo político com os Vereadores. Além disso a natureza do diálogo estava estipulada de maneira bastante precisa, a saber, a abertura do debate público através de Sessões Extraordinárias e Audiências Públicas que garantissem o amplo debate com os movimentos sociais ali organizados. Caso garantíssemos isso, haveria algum sentido em manter a Ocupação? Para a maioria da Ocupação não, mas para o nosso herói nacional... Logo, se eu sou um golpista ou um manipulador, todos que votaram e defenderam esta posição o são! A questão é que conquistamos uma enorme vitória sobre o grupo político do poder governamental, fazendo-o recuar e arrancando na luta o debate público, mesmo dominado por manipulações e enrolações, sobre os problemas de interesse proletário. Mas nosso herói parecia estar nas falésias da revolução de um homem só!
Não satisfeito com sua esquizofrenia risível, nosso herói nacional insiste em dizer que não houve erro político no dia 13 de agosto. Ele pergunta-se, pois, qual a diferença de método desta com a Comissão do dia 07 de agosto. Pois bem, vamos ao caroço do problema. A Comissão do dia 13 de agosto fora votada apenas para ir representar o movimento na manutenção do diálogo com a Câmara dos Vereadores, mesmo após os absurdos acontecimentos de agressão e violação de princípios constitucionais básicos contra cidadãos legítimos. Nada mais, nada menos. Depois, dirigimo-nos ao movimento e, numa pequena Assembleia, deliberamos pela manutenção do diálogo. Não preciso salientar que o nosso herói nacional retirou-se da Assembleia em função de sua monossilábica palavra de ordem: “ação direta já!”. Uma coerência assustadora, diga-se de passagem. A comissão do dia 13 de agosto além de ter sido eleita “apenas” para representar o Coletivo na Audiência Pública do dia 14 de agosto, aceitou ir a uma reunião no dia 13 de agosto e pelos relatos, às 20 horas, para receber do emissor governamental que a Audiência Pública estaria cancelada. Ora, não é preciso muito para saber que é verdade que existe uma tensão entre a Câmara e a Prefeitura de São Luís, todavia em questões fundamentais de interesse da reprodução destes grupos atrasados possuem amplo e irrestrito acordo. E mais: estão todos contra o movimento de Ocupação e nossa análise sobre a senilidade política da Câmara. Não havia nenhuma posição oficial da Mesa Diretora da Câmara, mas apenas operou-se uma manobra política conduzida por apenas 3 Vereadores. Como sabemos, no dia 14 de agosto, haveria o Painel sobre Mobilidade Urbana, mas pela ausência dos representantes da Prefeitura e do movimento de Ocupação, a mesma não aconteceu. É sabido, conforme relatou nosso herói, que seu único erro foi ter de maneira “horizontalista”, “isolada”, em função de “circunstâncias emergenciais”, cancelado o Ato do dia 14 de agosto. Caso não se tratasse de um proto-anarquista, não ficaria surpreso pelo excessivo “centralismo” autoritário. Mas, tratando-se de um libertário, o que pensar? Agora compreendo bem as diferenças “arrogantes” de Marx com o minúsculo e “humilde” Bakunin e seus delírios ridículos. A política é substituída pela administração da “logística”. Para preservá-la, nosso herói, em nome da democracia radical, cancela com um grosseiro argumento de segurança algo que deveria ser canalizado para o embate político amplo. Mas como convocar uma Assembleia às 20 horas do dia 13? Parece-me uma pergunta descabida, posto que deveríamos manter o Ato e manter posição de vigilância e de denúncia pública da Prefeitura e da Câmara por desrespeitar acordos firmados publicamente com o movimento de Ocupação. Uma lição socialista inegociável. O movimento do Real modifica-se, o que exige reorientação da política do movimento. Nesse caso, o Ato tinha o caráter de “acompanhamento”, mas deveria ser reafirmado como um Ato de denúncia pública da manobra levada a termo pelo poder governamental.
Portanto, trata-se de uma atitude política do poder governamental em tentar desmobilizar o processo de luta e enfrentamento contra os podres poderes. O movimento deslizou numa tática antiga usada largamente pelo poder instituído para desmobilizar a resistência aos ataques. Particularmente, fiz apenas a exigência pública de explicações sobre o ocorrido e indicando a convocação de um espaço público para resolver o problema. Para o nosso herói nacional trata-se de uma tentativa singular de “tumultuar” o processo auto-organizativo do Coletivo. Imagino que o direito inalienável de crítica não guarda nenhuma correlação com tumulto. Um proletário tem o direito ontológico de desconfiar e de vigiar seus lideres. Da mesma maneira que os proletários coletivamente têm o direito ontológico de lutarem contra o Estado Ilegal. Mas como nosso herói não é muito afeito ao rigor do debate, ou mesmo às premissas filosóficas das diferenças políticas, entendo seu pouco trato com as questões de método. Contudo, não posso me furtar de tentar colocar as coisas em seu devido lugar. Marx já havia dito que não há programa mais preciso do que aquele que é a classe mesma em movimento. Nunca exigi nenhuma Carta de Princípios ou algum Regimento Interno de algo que foi apenas uma frente de mobilização de ação direta ocupante da Câmara de Vereadores de São Luís. Minha exigência é mais radical, mais substantiva na forma e no conteúdo de seus predicados. Minha exigência pauta-se na defesa radical da democracia proletária, com todos os atributos qualitativos que tentei esboçar provisoriamente. No que diz respeito a verdade, pois, tenho que miseravelmente lembrar, conforme magistral fórmula apresentada por Guy Debord, que “a verdade é um momento do que é falso”. Não estaríamos diante de uma mentira em estado puro do estatuto da envergadura do nosso herói nacional? Descartes, perto de muitos “radicais livres”, é mais revolucionário na história da Humanidade do que meros portadores de palavras de ordem vazias e totalmente desprovidas de conteúdo efetivamente revolucionário. Luto, penso, logo existo!


[1] Economista e Professor do IFMA, Campus Maracanã.
[2] Como nosso herói nacional não assina seus textos com seu nome completo, adotei, com uma camada fina de ironia, sua identificação na rede social da falsificação universal. Na verdade, não seria menos curioso que numa rede da mentira, um mentiroso publique textos mentirosos sobre os acontecimentos que ele delira saber julgar. Uma pequena ironia para um fanfarrão que, talvez nem ele mesmo, possivelmente julgue-se com alguma seriedade.

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