sábado, 12 de fevereiro de 2011

Egito: a esfinge de estômago vazio.

A globalização industrial no Magreb e norte da África está levou a uma inaudita espiral de desemprego, miséria e fome absoluta para a população. É isso que move as atuais rebeliões sociais na região. Por JOSÉ MARTINS



De Tunis ao Cairo, povos lutam para se desfazer de seus grilhões. Esse é título da coluna de Silvia Cattori em seu indispensável blog Political Writings. Veja como a sensibilidade de uma combatente jornalista é capaz de descrever com perfeição a natureza das coisas: “Quando, em 17 de Dezembro de 2010, um jovem estudante tunisino, Mohamed Bouazizi, levado ao desespero, se imolou em fogo, depois que uma policial seqüestrou os poucos legumes que ele vendia para garantir dignamente as necessidades de sua família, quem poderia imaginar que seu gesto iria incendiar o coração de milhões de pessoas, tomar conta da Tunísia, conduzir um mês depois à fuga de Ben Ali e à queda do seu regime, livrar povos inteiros de seus medos e levá-los à revolta?”

Aqui é o estômago que comanda as idéias e as rebeliões políticas no norte da África e Oriente Médio. A fome que assola a população foi o estopim de rebeliões simultâneas do Magreb (Argélia, Marrocos e Tunísia) ao Egito, Jordania, Iêmen, etc. A questão palestina e outros conhecidos problemas do chamado mundo árabe não determinam os atuais acontecimentos. Não estamos frente a meras motivações étnicas, nacionais, religiosas ou, como preferem os ideólogos do império, a um “choque de civilizações”. Não se trata de cristãos (e judeus) de um lado e de muçulmanos do outro. Trata-se de capital (e capitalistas) de um lado, e trabalhadores do outro. As causas dessas atuais rebeliões são predominantemente materiais, quer dizer, econômicas.

Diferentemente de muitas outras grandes produtoras de petróleo da área, como a Líbia e as demais localizadas em torno do Golfo Pérsico, as economias atualmente convulcionadas do Magreb, Egito, etc. não têm muito petróleo. São marcadas mais por uma nova estrutura econômica criada pela onda de globalização produtiva (indústrias montadoras e agronegócio exportador) das últimas décadas. Compõem um novo e lucrativo espaço de valorização (lucro) das empresas maufatureiras e agroindustriais. É essa nova base de imperialismo econômico – introduzida nestes países de maneira mais intensa neste início de século 21 – que aumentou rapidamente a miséria da sua população e agora transforma a natureza dos conflitos políticos da região.



PULANDO DO NAVIO – No Egito – com cerca de 80 milhões de habitantes a serem tosquiados pelo novo capital globalizado e coalhado de montadoras globais, é a velhíssima luta de classes que ultrapassa a geopolítica e entra em cena de forma mais decisiva, acelerando o processo social. Os dirigentes das gigantes empresas globais sentem a porrada. Vislumbrando nas rebeliões atuais sinais de derretimento do Estado e ingovernabilidade burguesa, os capitalistas são os primeiros a pular do navio:

“Empresas internacionais estão interrompendo as operações no Egito, enquanto uma revolta contra o governo local entra no sétimo dia, depois de deixar ao menos 125 mortos. A cervejaria Heineken, a empresa do setor químico AkzoNobel, a companhia de produtos de consumo Unilever e as montadoras Nissan Motor e General Motors (GM) estão entre as empresas que suspenderam a produção no país. A Heineken informou que interrompeu as operações, retirou 25 funcionários estrangeiros em aviões particulares e pediu que os empregados egípcios fiquem em casa. A cervejaria emprega 2.040 pessoas no país. Um porta-voz da Unilever informou que as operações da companhia no Egito estão suspensas desde quinta-feira. Segundo ele, a empresa pretende retirar dois funcionários e 12 consultores estrangeiros do país assim que possível.”

“A atual situação política no Egito afetou a maior parte das indústrias, inclusive as automotivas. A instabilidade vivida pelo país fez com que a maioria das fábricas fechasse as portas por tempo indeterminado. A preocupação, além da falta de peças, é de que os veículos não cheguem a seus destinos. Até agora, Mercedes-Benz, BMW, Nissan e General Motors já emitiram comunicados oficiais, informando a suspensão de suas atividades. Já a Volkswagen, por enquanto, só parou as linhas de montagem, mas é provável que em breve outros setores também sejam fechados, para evitar vandalismo. A Mercedes ainda tomou a ação de retirar seus trabalhadores estrangeiros do país, para garantir sua segurança. O Egito hoje é um dos maiores produtores da região, tendo presentes em seu território muitas marcas como Brilliance, BYD, Chery, Chevrolet, Daewoo, Fiat, Hyundai, Isuzu, Jeep, Jinbei, Lada e Mahindra, além das citadas acima.”

Como na China, no México, no Haiti, etc., as “empresas mundiais” instaladas no Egito foram centralizadas em plataformas de exportação ou Zonas Francas, paraísos de desregulamentação, onde essas empresas são totalmente isentas de impostos e demais taxas, com liberdade para movimentar entrada e saída de capitais, ausência de leis trabalhistas, etc. É o que explica orgulhosamente em seu site a própria General Authority for Investiment [Autoridade Geral de Investimento] do governo egípcio: “O Egito tem incentivado a criação de Zonas Francas [Free Zones] desde o início dos anos 1970, com o objetivo de aumentar as exportações, atrair investimentos externos, introduzir tecnologias avançadas e criar mais oportunidades de emprego.

As Zonas Francas estão localizadas no território nacional mas são consideradas áreas ao largo do território [offshore]. Os investidores que operam dentro das Zonas Francas exportam acima de 50% de sua produção total. Dentre os incentivos e garantias da Zona Franca estão a isenção permanente [life time, no original] de todos os impostos e taxas; ausência de qualquer regulamentação sobre importações/exportações; opção de vender pequena parte da produção no mercado interno, desde que sejam pagas as tarifas alfandegárias; ausência de regulamentações trabalhistas. Para facilitar as operações de importações/exportações, as Zonas Francas estão usualmente localizadas junto a portos marítimos e aeroportos”

A chamada escola neoclássica da Economia Política corresponde à visão mais liberal e vulgar da economia e do mundo capitalista. É a visão econômica mais didática e popular, predominante tanto na academia quanto nos governos e na mídia em geral. É a visão apologética da naturalidade da propriedade privada, do Estado, do mercado e do capital. Qual cidadão comum poderia imaginar um mundo sem essas coisas tão “naturais”? Os neoclássicos (e seus primos keynesianos) existem para negar ideologicamente essa possibilidade.



As classes dominantes no Egito (e nas demais economias do norte da África) crêem piamente nas promessas dos manuais neoclássicos de Economia Internacional ensinada nas faculdades de Economia do mundo todo. E fizeram zelosamente o trabalho sujo de encarcerar sua faminta população nas imundas linhas de montagem industrial das Zonas Francas e projetos de agronegócios. Mas até agora, a despeito de uma enorme satisfação (e gordos lucros, off course) dos capitalistas estrangeiros e nacionais com a rígida aplicação daqueles manuais, os resultados são muito diferentes que fora prometido à população trabalhadora pela propaganda imperialista das maravilhas do livre mercado. Os resultados desta aventura das burguesias do Magreb e norte da África estão a levar a uma inaudita espiral de desemprego, miséria e fome absoluta nos seus países. A aplicação prática da ideologia econômica liberal, que prometia felicidade e bem-estar para todos, acabou fornecendo o combustível para as atuais rebeliões populares.

EXTASE LIBERAL E RESSACA DO CAPITAL – Não é por acaso que para qualquer aspecto político, geopolítico, cultural, religioso, etc. que se considere nas atuais rebeliões a economia está presente. As razões estão no recente processo de globalização que inundou a região de capital e sua ação altamente dissolvente de velhas estruturas nacionais. No Egito, por exemplo, a principal economia da área, as privatizações e a forte abertura das fronteiras ao capital globalizado resultaram, no período 2003/2007, em um forte afluxo de investimentos externos diretos (IED). Vejam os números oficiais a respeito, apresentados em recente relatório da Economic and Social Commission for Western Asia (ESCWA).

2003 – US$ 450 milhões;
2004 – US$ 2,161 bilhões;
2005 – US$ 5,376 bilhões;
2006 – US$ 10,043 bilhões;
2007 – US$ 11,578 bilhões.

Em 2007, o fluxo liquido de IED no Egito era cerca de 25 vezes maior que em 2003. Como percentagem do PIB, pulou de mero 0.6% em 2003 para 8.8% em 2006. Essa velocidade de expansão do IED foi disparadamente a maior do mercado mundial. Na América Latina, por exemplo, o volume de entrada de IED no mesmo período não chegou a dobrar. Para a China – reconhecidamente um dos maiores receptores mundiais deste tipo de investimento – o fluxo de entrada saltou de US$ 53,5 bilhões para US$ 69,5 bilhões. Apenas cerca de 30% maior.

Essa enorme onda de investimentos resultou em uma taxa muito elevada de crescimento do PIB – de aproximadamente 4% de crescimento em 2004 para mais de 7% em 2008. As reservas internacionais também subiram velozmente, de US$ 14,9 bilhões em 2004 para US$ 34,7 bilhões em 2008. Mas havia uma pedra no meio do caminho. A crise de 2008/2009 interrompeu bruscamente esse “crescimento brasileiro” da economia egípcia. E a superprodução da fase anterior de êxtase liberal transformou-se em uma ressaca do capital: queda na produção, crescentes déficits macroeconômicos e níveis socialmente inaceitáveis de desemprego.

Em detalhado trabalho do economista Samir Radwan tratando desse impacto da crise global de 2008/2009 sobre o Egito, encontramos as seguintes conclusões: “A crise econômica e financeira global se transmitiu negativamente na economia egípcia de maneira muito particular, desde meados de 2008. O impacto foi mais pronunciado no setor real da economia do que no setor bancário. O impacto na economia real refletiu-se nos seguintes indicadores: 1) declínio do crescimento do PIB de 7,2% em 2007/2008 para aproximadamente 4% em 2008/2009; 2) redução do fluxo de IED e declínio do investimento interno; 3) aumento do retorno de migrantes e expectativa de queda nas remessas; 4) pressões crescentes no balanço de pagamentos; 5) colapso das bolsas de valores; 6) desaceleração do crescimento de setores econômicos, especialmente no setor do turismo, manufaturas e Canal de Suez.

Observação da Crítica: Esse fator dos migrantes é muito importante para as economias da região. Uma massa enorme de trabalhadores migra para o exterior (principalmente para os países produtores de petróleo do Golfo Pérsico) e remetem grande parte dos seus rendimentos para a família que ficou no Egito, Tunísia, etc. São volumes relativamente elevados para o balanço de pagamentos do país. Agora, com a crise atingindo o investimento e emprego naqueles países petrolíferos, os migrantes retornam para o Egito, o que origina dois problemas: um macroeconômico, na medida em que o grande volume de divisas remetidas anteriormente desaparece e deixa de ser contabilizado no balanço de pagamentos; outro social, na medida em que o retorno desses trabalhadores agora engrossa as multidões de desempregados em seu país de origem e suas famílias vêem desaparecer suas fontes de sustento.

A prolongada recessão do mercado de trabalho e a conseqüente deterioração social são os mais sérios aspectos da crise econômica e financeira global no Egito. O maior impacto imediato da crise foi a incapacidade do mercado de trabalho se ajustar, exacerbando o problema do desemprego, e agravando a situação de grupos específicos como as mulheres e os jovens”

O show capitalista tem que continuar. Crescimento econômico ou revolução. Para a economia voltar a crescer o capital tem que recuperar a taxa de lucro do período de expansão do ciclo anterior. Mas para isso os trabalhadores devem receber menos pelo seu trabalho e pagar mais pelos seus alimentos. É esse processo que leva milhões de pessoas, como Mohamed Bouazizi, ao desespero e à morte. Resumindo: a exploração e miséria dos trabalhadores devem aumentar para que o capital se recupere da crise. Mas essa necessidade destaca dois problemas muito graves na economia do Egito e vizinhança: o preço da força de trabalho já é muito baixo e o preço dos alimentos está mais alto do que nunca. Dá para arrochar ainda mais? Trataremos desses problemas no próximo boletim.

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